RECONHECIMENTO FACIAL NO BRASIL – RISCOS JURÍDICOS, AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO E AMEAÇA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

RECONHECIMENTO FACIAL NO BRASIL – RISCOS JURÍDICOS, AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO E AMEAÇA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

ARTIGO DA ADVOGADA ADRIANA GARIBE

O avanço das tecnologias de vigilância tem se transformado profundamente na forma como o Estado e as empresas privadas interagem com os cidadãos no espaço público. Entre essas tecnologias, destaca-se o reconhecimento facial — ferramenta poderosa de identificação biométrica que opera por meio de coleta, análise e classificações de imagens do rosto humano com bases de dados. Embora às vezes muitas vezes justificada como instrumento de segurança, sua aplicação no Brasil tem levantado sérias preocupações, especialmente no que se refere à proteção de dados pessoais, privacidade e respeito aos direitos fundamentais.

De acordo com levantamento realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), em parceria com a Defensoria Pública da União (DPU), mais de 83 milhões de brasileiros já estão sendo monitorados por sistemas de reconhecimento facial, o que corresponde a 40% da população nacional. Esse crescimento alarmante — 42% em menos de um ano — ocorreu sem uma legislação específica que disciplina a prática, sem diretrizes técnicas públicas e sem garantias mínimas de transparência ou controle social.

A primeira grande preocupação é a base legal para o tratamento de dados biométricos. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018 – LGPD) classifica a biometria facial como dado pessoal sensível, exigindo requisitos mais específicos para seu tratamento. Para ser lícito, o uso de tais dados deve atender a pelo menos uma das bases legais do art. 11 da LGPD, como o consentimento do titular ou o cumprimento de obrigações legais ou regulatórias pelo controlador. No entanto, na prática, as imagens comuns vêm sendo captadas sem qualquer aviso prévio, sem consentimento explícito e sem garantias de que os dados não estão sendo armazenados ou compartilhados de maneira indevida.

A coleta, muitas vezes, ocorre em locais públicos — como estações de metrô, rodoviárias, escolas, eventos e praças —, por meio de câmeras que operam de maneira invisível, sem placas informativas, sem políticas de privacidade acessíveis e, principalmente, sem a dívida de fornecimento de contas aos titulares dos dados. Isso configura uma clara violação aos princípios da finalidade, da necessidade, da transparência e da responsabilização previstas na LGPD.

Outro ponto crítico é a ausência de governança pública e normatização setorial específica. Atualmente, não existe no Brasil uma norma que regule o uso do reconhecimento facial por órgãos públicos ou entidades privadas. Em muitos estados, o gerenciamento dos sistemas é uma carga das Secretarias de Segurança Pública, sem supervisão da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e, em 22% dos casos, com envolvimento direto de empresas privadas, o que amplia o risco de uso secundário ou indevido das informações coletadas.

Além disso, estudos internacionais demonstraram que os sistemas de reconhecimento facial apresentam margens significativas de erro, especialmente no que se refere à identificação de pessoas negras, indígenas e asiáticas. Isso não apenas amplia a possibilidade de abordagens policiais injustas ou prisões equivocadas, como também reforça estigmas sociais e viola o princípio constitucional da igualdade. A ideia de neutralidade algorítmica é uma falácia: tecnologias treinadas com base em dados enviados tendem a reproduzir e amplificar as discriminações existentes.

A falta de auditorias independentes, relatórios de impacto à proteção de dados, políticas claras de retenção e descarte de imagens e canais efetivos para o exercício dos direitos dos titulares ainda agrava mais o cenário. Na prática, os cidadãos não sabem que estão sendo monitorados, não têm acesso às informações sobre os dados encontrados, nem sabem como — ou com quem — exercer seus direitos.

Nesse contexto, é urgente que o uso do reconhecimento facial seja objeto de debate público moderno, regulamentação específica e controle efetivo por parte da ANPD.

A adoção de tecnologias inovadoras não pode ser dissociada da ética, da legalidade e da proteção à dignidade humana. A pública é um valor importante, mas não pode ser alcançada aos custos de segurança da violação dos direitos fundamentais. Nenhum sistema de vigilância — por mais eficiente que pareça — pode ser ocasionado pela perda da liberdade de um inocente.

Portanto, o reconhecimento facial precisa deixar de ser um instrumento de vigilância opaco e se tornar uma tecnologia regulada, auditável e sujeita ao controle social e judicial. Sem isso, normalizamos a exceção como regra, e colocando em risco pilares centrais da democracia.

A advogada Adriana Garibe é sócia e coordenadora da área de Direito Digital da Lemos Advocacia Para Negócios.

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