COLUNA DA MÁRCIA AMERIOT

22 de setembro de 2014.
A
banalidade do mal
Márcia Ameriot

A
banalidade do mal que espreita de forma ameaçadora a sociedade não é senão a
incapacidade de pensar?

algumas semanas, tive o prazer de rever o filme “Hannah Arendt”, da diretora
Margarethe von Trotta, e, desde então, procurava um momento para escrever
minhas impressões sobre ele e, mais ainda, sobre as ideias da  grande filósofa e jornalista judia que
exilou-se nos EUA em 1941, depois de fugir do campo de concentração de Gurs, durante
os anos negros da Segunda Grande Guerra. 
O filme causa
impacto. Trata-se, tema central do pensamento de Hannah Arendt, de refletir
sobre a natureza do mal. O pano de fundo é o nazismo, e o julgamento de um dos
grandes malfeitores da época, Adolf Eichmann.
Em maio de 1960,
Adolf Eichmann –um dos últimos líderes nazistas do alto escalão ainda vivo,
que tinha fugido para a Argentina após a guerra– foi sequestrado por agentes
do Mossad (serviço secreto israelense), levado de avião a Jerusalém e julgado
por crimes contra a humanidade.
Refugiada judia alemã
e autora de um livro famoso, “Origens do Totalitarismo”, Hannah
Arendt cobriu o julgamento para a revista “New Yorker” (seu livro foi
publicado como artigo em cinco partes).
Ela apresentou dois
argumentos provocantes. O primeiro foi que Eichmann não teria sido o maligno
organizador dos campos de extermínio, mas sim um burocrata medíocre, “não
um monstro”, mas “um palhaço”. Veio disso o subtítulo “a
banalidade do mal”.
O segundo foi que os
chamados “conselhos judaicos” na Alemanha e Polônia foram cúmplices
no assassinato em massa. Eles ajudaram os nazistas a arrebanhar as vítimas,
confiscar bens e os enviar para os campos onde morreriam.
Hannah foi repudiada.
Alguns dos ataques contra ela foram exagerados. Mas algumas de suas visões
também, entre elas o retrato que traçou de Eichmann. Para Arendt, Eichmann
teria cometido seus atos sem ter consciência e sem mesmo ser antissemita
virulento.
Hannah acompanhou o
julgamento, esperando ver o monstro, a besta assassina. O que viu, e só ela
viu, foi a banalidade do mal. Viu um burocrata preocupado em cumprir as ordens,
para quem as ordens substituíam a reflexão, qualquer pensamento que não fosse o
de bem cumprir as ordens. Pensamento técnico, descasado da ética, banalidade
que tanto facilita a vida, a facilidade de cumprir ordens. A análise do julgamento,
publicada pela revista, causou escândalo, em particular entre a comunidade
judaica, como se ela estivesse absolvendo o réu, desculpando a monstruosidade.
Hannah Arendt não
queria absolver ninguém. Não pretendia fornecer nenhuma explicação histórica da
catástrofe nazista. Buscava uma chave de leitura antropológica e filosófica da
ação humana. Da maldade. Da incapacidade de se dar conta do mal cometido…
A banalidade do mal, portanto,
é central na história e nos escritos de Arendt sobre o julgamento. Por que é tão importante isto, e por que a
mensagem do filme é autêntica e importante? Porque a monstruosidade não está na
pessoa, está no sistema. Há sistemas que banalizam o mal.
Durante o processo,
Eichmann jamais deixou de proclamar sua inocência, explicando como, na sua
vida, nada mais fez do que obedecer às ordens, respeitando as leis e assumindo
seu próprio dever. “As suas ações eram monstruosas, mas quem as fez era
quase normal, nem demoníaco, nem monstruoso”, escreveu então Arendt para
explicar o inexplicável.
Existe uma
“banalidade do mal” que não se pode levar em consideração se queremos
evitar cair novamente na espiral infernal dos genocídios. Não certamente porque
o mal, em si, seja banal. Nem porque aqueles que o cometam possam ser
considerados banais. Mas porque todos podemos fazer o mal, às vezes sem nos
darmos conta disso, mesmo que não sejamos nem sádicos, nem monstruosos.
Não se trata de negar
que a perversão existe e que algumas pessoas experimentam um prazer particular
ao fazer com que os outros sofram. Trata-se, ao contrário, de explicar que o
bem e o mal não são separados por uma barreira insuperável. Mesmo que a
barreira exista sempre, superá-la é muito mais fácil do que se possa imaginar.
Nenhum de nós está
protegido da barbárie. Ninguém pode saber como se comportaria em circunstâncias
particulares. Ou, melhor, todos podemos “banalmente” fazer o mal,
porque barbárie e civilização convivem em todo ser humano. A cega obediência ao
dever pode induzir qualquer um a agir sem refletir. E, quando se deixa de
pensar, não se é mais capaz de distinguir entre o que é certo e o que é errado.
Quem foi capaz de
esquecer-se das cenas de barbárie praticadas por “cidadãos de bem” no mês de
maio deste ano, contra Fabiane Maria de Jesus, foi morta no Guarujá, no litoral
de São Paulo, ao ser confundida com uma suposta sequestradora de crianças? O que faz um ser humano normal realizar os
crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?
A resposta está no
mal banal. Trata-se de uma prática do mal promissora nas sociedades
massificadas, possuidoras de organizações econômicas, políticas e sociais
potentes, nas quais os seres humanos tendem a se sentir sem poder, solitários,
submissos e quase condicionados. Vivendo apenas como animal laborante, os
homens tecnificam e burocratizam as suas obrigações e se tornam, desse modo,
incapazes de pensar as consequências das ordens dadas pelos seus superiores ou
grupos. O mal banal
caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a privação de
responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma
lógica externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age
como mera engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos
acontecimentos ao seu redor. Quem pensa resiste à pratica do mal.
A banalidade do mal
que espreita de forma ameaçadora a sociedade não é senão a incapacidade de
pensar?
Márcia Ameriot é superintendente da Fundação Romi,
localizada em Santa Bárbara d´Oeste. A profissional, da área de
responsabilidade social empresarial e desenvolvimento local
sustentável,  é jornalista, historiadora e desenvolveu sua
carreira em organizações como o IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do
Investimento Social) e Fundação Tide Setubal. Tem experiência
internacional  na área de violência doméstica e direitos da
mulher, tendo atuado por 12 anos na Itália, Chile e
México, onde foi uma das fundadoras da organização Mujer Integral, da qual foi
representante junto às Nações Unidas nos trabalhos de revisão da Conferência de
Beijig, em Nova Iorque. Márcia é formada
em Princípios de Gestão para Organizações do Terceiro Setor pela Fundação
Getúlio Vargas.
Compartilhe:
Facebook
Twitter
LinkedIn

Veja também

LIDE CAMPINAS PROMOVE ENCONTRO SOBRE INVESTIMENTO E MORADIA NOS ESTADOS UNIDOS

O Lide Campinas promoveu, nesta quarta-feira (24/04), na Casa Lide, em São Paulo, um encontro …

Deixe uma resposta

Facebook
Twitter
LinkedIn