COLUNA DA MÁRCIA AMERIOT

08 de setembro de 2014.
Yes, nós temos racismo!
Márcia Ameriot
Aranha Negra foi um
dos maiores goleiros da história. Lev Yashin, dono deste apelido por se vestir
todo de preto, ficar perto da rede (teia) e ter uma agilidade espantosa. Sendo
tão russo quanto a boa vodca, o goleiro, obviamente, era branco.  Mario Lúcio Duarte Costa, “nosso” Aranha,
recebeu o  mesmo apelido de um de seus
treinadores, que o comparou com Yashin quando atuava na categoria de base.  Aranha, não macaco. E houve quem não achasse
que a mudança de um animal por outro no “calor do jogo”  pudesse ser considerada racismo. Que o que se
faz num campo de futebol, como em Las Vegas, fica no campo de futebol. Mas não.
Sempre tem um teimoso que prefere resistir, não é? E aqui estou eu conversando
com vocês, leitores, sobre o tema.
Para o historiador
Luiz Carlos Ribeiro, da Universidade Federal do Paraná, o ato de torcer em meio
a uma multidão faz com que sentimentos que são controlados no convívio social
cotidiano acabem expostos. Assim, o racismo presente na sociedade acaba
aparecendo nos gramados.
“O racismo
existe na sociedade, não é uma patologia do futebol, é uma doença social
presente em toda a sociedade”, reforça o pesquisador, que coordena o grupo
de estudos Futebol e Sociedade da universidade.
Mas não vamos falar
de Aranha versus Patrícia Moreira, nem de futebol.  Falemos do racismo como uma questão histórica
e cultural no último país independente do continente americano a abolir a
escravidão e o tráfico de negros.  A
abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, não constituiu uma mudança
qualitativa na estrutura social do Brasil. Os senhores de escravos foram
substituídos pelos fazendeiros de café, que eram seus herdeiros diretos. E
apesar da substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre, o antigo escravo
não teve acesso pleno ao mercado de trabalho. Seria hipocrisia dizer que a Lei
Áurea tornou os negros  iguais aos
brancos. Havia séculos de submissão e muitos direitos separando uns de outros e
até hoje há estruturas de poder e privilégios que beneficiam uns em detrimento
de outros, ainda que não queiramos admitir. Mesmo que sejamos contra o sistema
de cotas. Uma pergunta rápida e uma resposta sincera evitam aqui muito rodeio e
vários parágrafos de comparação de pesquisas sociológicas ou citações de antropólogos:
quantas negras você viu nas capas de revistas 
nas bancas? E atrizes e atores negros, quantos? Dá pra contar com dois
ou três dedos de uma das mãos, não é?
Na realidade, o que
se costuma defender e difundir entre nós é um pressuposto falso de que o povo
brasileiro é livre do preconceito racial. Admite-se que todos os cidadãos têm
iguais direitos e deveres e, com isso, tenta-se ocultar ou manter a profunda
desigualdade econômica que subjaz a toda e qualquer forma de segregação social. 
O que se verifica na
prática é que o negro, em geral, sofre toda espécie de humilhações  e atitudes de rejeição, reveladoras de um
preconceito que, hipocritamente, se busca camuflar.
Os negros foram
escravizados por 388 anos! A situação jurídica do escravo negro era diversa dos
demais homens, pois ele não era considerado, pela lei, como ser humano, mas era
designado como “coisa”, não passava de um objeto de propriedade. Tanto é que
sobre eles são admissíveis institutos jurídicos utilizados para tutelar os
bens, como usufruto, condomínio. O escravo era um ser sem personalidade,
considerado um bem, era desprovido de toda sua capacidade civil. Direitos
consagrados, atualmente, pela Constituição e pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos essenciais a todos os homens eram totalmente desconsiderados
em relação aos escravos, pois se eram desprovidos de liberdade, dignidade e
igualdade de direitos não tinham lugar. Tudo isso durante quase quatro séculos!
Seria impossível imaginar que essa situação se revertesse por força de uma
caneta. Mesmo os negros sendo maioria da população, como eram naquele então e
como o são ainda hoje em nosso país.
Mas não o serão por
muito tempo. Os dados oficiais sobre a violência e a taxa de mortalidade da
juventude negra apontados no estudo “Mapa da Violência 2012: A Cor dos
Homicídios no Brasil”, demonstram os efeitos perversos do racismo também
na  sobrevivência da população negra
brasileira. Inquieta mais ainda a tendência crescente dessa mortalidade seletiva.
E segundo os dados disponíveis, isso acontece paralelamente a fortes quedas nos
assassinatos de brancos. Dessa forma, se os índices de homicídio do país nesse
período estagnaram ou mudaram pouco, foi devido a essa associação inaceitável e
crescente entre homicídios e cor da pele das vítimas: considerando o conjunto
da população, entre 2002 e 2010 as taxas de homicídios brancos caíram de 20,6
para 15,5 homicídios – queda de 24,8% – enquanto  a de negros cresceu de 34,1 para 36,0 –
aumento de 5,6%. Com isso a vitimização negra na população total, que em 2002
era 65,4 – morriam assassinados, proporcionalmente, 65,4% mais negros que
brancos, no ano de 2010 pulou para 132,3% – proporcionalmente,  morrem vítimas de homicídio 132,3% mais
negros que brancos. Coincidência?
Estão aí para que
nunca nos esqueçamos  casos como o da
auxiliar de limpeza e mãe de 4 filhos, Cláudia Silva Ferreira, negra, morta com
um tiro e arrastada por uma viatura de polícia; o caso do pedreiro Amarildo
Dias de Souza, negro, torturado em uma unidade de polícia pacificadora e
desaparecido até hoje, e o do professor de história confundido com um ladrão, ,
André Luiz Ribeiro, mulato de 27 anos, que foi espancado por moradores da
periferia de São Paulo e  levado para a
delegacia, onde ficou por dois dias, já que o dono do bar assaltado confirmou
em depoimento que André seria o ladrão.
Sem exagero, o
preconceito pode até ser percebido com facilidade no uso cotidiano da língua,
entendendo que esta cumpre a função de expressar a própria cultura.
Com efeito, a todo
instante, ouvimos e empregamos construções que ratificam esse preconceito.
Basta observar que o Dicionário Aurélio registra uma série dessas expressões
correntes na língua, em que o adjetivo negro tem conotações negativas: humor
negro, lista negra, magia negra, mercado negro, ovelha negra entre outras. É
também bastante sintomático que o referido dicionário, entre os diversos
significados que atribui a negro, registre os de ‘sujo’, ‘funesto’, ‘maldito’,
‘perverso’ e ‘sinistro’.  Isso sem contar
expressões como “negro de alma branca” ou piores como “só podia ser preto” etc.
A essa altura você,
caro leitor, pode estar pensando: “ ah não, lá vem ela com esse discurso
politicamente correto;  preferia quando o
Mussum podia ser “zoado” à vontade e ninguém reclamava”… Será?  Você está realmente convencido que chamar um
negro de macaco é brincadeira?
Dias atrás li a
notícia de que a marca de roupas espanhola Zara retirou de seu catálogo de
vendas uma camisa infantil estilo marinheiro decorado com uma estrela amarela,
que provocou protestos por sua semelhança com o distintivo imposto pelos
nazistas aos judeus. A roupa, de listras horizontais em azul e branco tinha uma
estrela de seis pontas no lado esquerdo do peito… Ninguém duvidou de que
fosse ofensivo.  Porque para o negro custa
tanto convencer a sociedade de que macaco não é um adjetivo?
Márcia Ameriot é superintendente da Fundação Romi,
localizada em Santa Bárbara d´Oeste. A profissional, da área de responsabilidade
social empresarial e desenvolvimento local sustentável,  é
jornalista, historiadora e desenvolveu sua carreira em organizações
como o IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social) e
Fundação Tide Setubal. Tem experiência internacional  na área de violência
doméstica e direitos da mulher, tendo atuado por 12 anos na
Itália, Chile e México, onde foi uma das fundadoras da organização Mujer Integral, da qual foi
representante junto às Nações Unidas nos trabalhos de revisão da Conferência de
Beijig, em Nova Iorque. Márcia é formada
em Princípios de Gestão para Organizações do Terceiro Setor pela Fundação
Getúlio Vargas.
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